News 81 - Milena Goulart
News 81
Às cinco da tarde de uma segunda-feira Josiana olhava
atentamente os ponteiros do relógio, enfastiada. Faltava apenas uma hora para
terminar o expediente e sua concentração para as coisas práticas da realidade
muito havia se esgotado.
Ludmila parou ao seu lado e murmurou algo como “hoje depois
do expediente tem aniversário da Fabiana. Você vai?” Fabiana, a perua usando
blusinha com estampa de tigre, que joga o sovaco sobre os ombros do magrelo da
área tributária. Passo. Obrigada pelo convite.
- Acorda Josiana.
Suspirou. Josiana se virou com impaciência apoiando o rosto
cansado nas costas da mão, esticando levemente sua sobrancelha, esquerda, para
cima.
- Você ouviu o que eu disse?
- Ouvi. Que vai ter um aniversário aí não sei de quem não sei
aonde. Eu não vou.
- Ah, você vai. Eu não vou pra uma festa da Fabiana sozinha.
E eu preciso ir, tem um contato profissional interessante pra mim que estará
lá.
- Hum. Quem é?
- Carlos Eduardo, diretor geral do departamento de
relacionamento com o cliente. Você precisa me ajudar, além disso, seria bom pra
melhorar essa cara e sair dessa fossa.
- Quem está na fossa? Você por acaso está vendo alguém aí
curtindo uma fossa?
- Cínica. Isso é só por que sou sua amiga, estou tentando
ajudar você.
- Não pedi por ajuda Ludmila... Mas já que você insiste em
ser útil, me traz um Dorflex minha cabeça está explodindo.
Ludmila saiu de perto, bufando, mas voltou com o Dorflex.
- Esquece esse homem, amiga. Vem comigo nessa festa... A
Fabiana tem um monte de amigos, quem sabe você não se distrai com alguém. Pelo
menos fica de papo com algum amigo do Carlos Eduardo, enquanto estiver falando
com ele! Faz isso por mim. Por favor?
- A que horas é a porcaria da festa?
- Às dez da noite. - Animou-se Ludmila - Você pode se
arrumar na minha casa eu tenho estojos de maquiagem da marca que você quiser...
- Tenho um compromisso antes disso. Encontro você lá, valeu?
- Qual compromisso?
- É pessoal. Mas estarei no raio da festa. Já me incomodou o
suficiente? Pode ir pra sua mesa, bom conversar com você.
Quando deu a hora Josiana arrumou as coisas na mochila e
saiu sem despedir-se. Pegou o elevador vazio e sentiu alívio por breves
segundos enquanto não viu ninguém. Olhou-se no espelho. O rosto um pouco
fatigado, a maquiagem borrada e os lábios ligeiramente ressecados. A
indiferença do reflexo lembrou-lhe um animal de zoológico. Se quisesse
soltar-se com alguém sobre seus problemas ela o faria, o que seria ao menos
saudável. Ludmila é boa amiga, mas é uma ostra manca no tocante à temas
amorosos e todo mundo tem uma amiga assim, que se acha muito entendida do
assunto e se presta a dar conselhos, mas só dá cabeçada em porta de vidro.
Incansavelmente. Como uma mosca.
Quanta injustiça. Não é certo pensar assim de Ludmila só por
que os homens com os quais ela saiu sempre a fizeram de idiota. Mas se era
severa assim com seus amigos mais ainda era consigo mesma, e odiou aquela
segunda-feira com todas as suas forças, em razão do acúmulo de críticas. Tinha
segredos e não ia conta-los até porque, em sua grande parte, feria a moral e os
bons costumes. Sua mãe de certo que ficaria escandalizada. Quem quer que a ouvisse
daria mais atenção à imoralidade do que ao sofrimento em si.
Atravessou a Rio branco em direção à Rua da Quitanda. Na
primeira vez em que esteve no nº 81, pareceu que no caminho o mundo a observava
e tinha medo de encontrar alguém conhecido. Tropeçou algumas vezes, enfiando o
salto acidentalmente entre uma pedra portuguesa e outra. Não queria ser notada,
todavia ganhava atenção. Hoje isto pouco importava e Josiana andava em linha
reta, de cabeça vazia, sem prestar a atenção no movimento. Serena. A dor de
cabeça e o mau-humor haviam passado.
A porta do estabelecimento dava para uma escadaria que
seguia prédio acima. Ambos os corrimãos enfeitados com uma luz neon, onde
algumas das pequenas lâmpadas restavam queimadas. O cheiro era ruim, lembrava
aqueles fumacês de boate pobre e decadente. Conforme se aproximava do salão
principal a música ia ficando mais alta e Josiana lembrou-se da primeira vez em
que havia estado ali, de como ficou ofendida por ter sido trazida para aquele
lugar.
As prostitutas circulavam ou dançavam no queijo localizado
aos fundos. Josiana virou o rosto para o exato momento em que um sujeito
embriagado beijou a bunda de uma delas e sorriu, faltando-lhe alguns dos dentes
na cara. E nisto sua presença, loura, alta, de camisa e saia social chamou a
atenção dos presentes. Já conhecia o esquema e sabia que as putas não
apreciavam competição vinda de desconhecidas, portanto, desde que fosse direto
pegar as chaves do quarto com Valdirene, ninguém iria incomodá-la: era amiga do
dono da casa. Bem, Dalton era.
Estar ali não mais a ofendia. Tanto ela quanto as putas da
News 81 tinham segredos parecidos, entretanto, isto não a fazia sentir-se como
uma delas, mas tão somente uma testemunha tranquila da subversão humana, da
qual também fora um pouco parte. Por um tempo. Um ano e meio mais ou menos. Um
ano e meio de economia de motel se for pensar. Verdade seja dita, Dalton foi
esperto não é todo dia que um cliente cafetão de puta pobre, cede um quartinho
do seu estabelecimento para um velho amigo esconder uma mulher. Advogados
criminais têm suas regalias.
“Dalton”. Pensou fechando a porta atrás de si. A música havia
ficado para trás e as portas e janelas fechadas, não deixavam passar um único
ruído trazido da rua. Josiana permaneceu de pé, a correr os olhos pela mobília,
as paredes meio gastas, o chão com parte do taco descascado. Depois abriu a
mochila, tirou o isqueiro, alguns baseados e foi conferir se o frigobar tinha
cerveja. Claro que sim, no quarto do patrão não ia faltar cerveja.
Desceu o zíper da saia pelas costas e desabotoou a camisa
social. Mesmo um pouco mais a vontade as lembranças agitadas deixaram o quarto
deveras sufocante. Abriu a janela, encostou-se ao parapeito de calcinha,
soutien e com a camisa aberta, pôs-se a fumar com uma mão e a beber com a
outra. O movimento da rua foi diminuindo, a luz do sol diminuído, o mundo
estava diminuindo. Fumar com uma mão e beber com a outra. Assim seria até que o
mundo se resumisse àquele quarto onde estavam presentes ela e suas memórias.
Esfregou a mão no rosto e no cabelo e os fios bagunçados pararam desarrumados
para cima.
Quando matou a quinta garrafa sentiu-se tonta demais para
ficar apoiada na janela e largou-se na cama com os braços jogados para cima.
Fumar com uma mão e fumar com a outra. Mergulhou numa meditação profunda
concernente a uma rachadura no teto. Quem sabe assim alcançar a paz. Não sem
antes expurgar seus demônios e encerrar de vez aquele drama ridículo, voltar a
trabalhar direito, viajar, sair com os amigos, levar alguém para cama. Coisas
de gente normal.
Aquela seria enfim, a última vez em que botaria os pés
naquele quarto. Nada mais justo, portanto, que ao virar-se para o lado
encontrasse o rosto dele novamente. Em não havendo presença física haveria de
ser pela memória entorpecida, tão fresca e persistente, pois Dalton não existia
em sua memória, ele persistia como uma maldição. Alucinada, ela o descobriu nu
ao seu lado, sobrenatural, observando-a com olhar vazio.
- Você... Você aqui. É claro. Você está em toda parte em
todas as paredes, sentado em todas as cadeiras, nos rostos de todos os
passantes e suas atividades triviais. Na minha casa, na minha cama onde quase
não há espaço para eu mesma dormir por que nela, há dezenas de você. Todos os
homens de barba escura e espessa se assemelham ao seu rosto, altivo, arrogante,
esnobe. Um deles me fez sentir frio na barriga, eu tinha tanta certeza que
quase o chamei pelo seu nome. E pela cidade assim vou eu, doentia, atrás do seu
rosto, do seu pescoço. Escrava da maldição da sua lembrança, quase
enlouquecendo por eventualmente cair na dura realidade e constatar que você não
está aqui e que não pretende voltar. Ai... Toque meu rosto. Desça entre minhas
pernas. Fale comigo. Eu quero sentir tão forte sua presença que a quilômetros
de distância você tenha terríveis dores de cabeça, uma inquietação ou ao menos,
um suspiro cansado por quem deixou para trás. Que seja por ela, se isto fizer
você lembrar-se de mim. Eu entenderia, ela merecia todo o amor dedicado por
direito às mulheres virtuosas. Um dia antes de você ir embora fui até seu
apartamento e a conheci, terminando de arrumar suas coisas. Ela é linda Dalton
o que fizemos eu e você? Da onde tiramos motivação para tamanha insensatez? Mas
antes meu preço fosse somente a saudade e os anjos me poupassem castigo ante a
heresia cometida contra um dos seus. Abrace-me você que na verdade não está
aqui e que não mais permitirei voltar a ver.
Horas depois Josiana acordou por causa de uma ventania e em
razão de uma mudança de tempo. Era noite. “Por que ainda estou aqui?” pensou ao
levantar, tonta, torpe e olhando um pouco confusa ao seu redor, para os
cigarros, as cervejas vazias. Que ideia idiota e que deprimente. No celular, 13
chamadas não atendidas de Ludmila. A festa, cacete.
- Ludmila?
- Onde você está? – Rosnou a amiga.
- A festa acabou?
- Eu te liguei 13 vezes sua... Miserável! Onde é que você
está que eu vou te pegar pelos cabelos!
- Desculpa Ludi, eu perdi a noção do tempo.
- Perdeu a noção do tempo é o caralho! Você sabe que horas
são? Eu estava desesperada atrás de você, sua mãe está desesperada atrás de
você! Onde você está?!
- Rua da Quitanda nº81.
- Vou passar de carro aí em 20 minutos.
Ludmila é muito mais velha e talvez seja por isso que às
vezes faz uso de um tom tão maternal. No dia anterior quando decidiu visitar a
News 81, não tinha pensado em como voltaria pra casa chapada, bêbada, sozinha
numa rua deserta do centro da cidade e apesar da bronca, não deixou de sentir
alívio ao ver Ludmila chegar.
- Que lugar é esse
Josiana?!
- Só pra te avisar, eu não sou puta.
- Há controvérsias. – Cruzou os braços e olhou em cólera
para Josiana por meio do retrovisor.
- Desculpa Ludmila.
- Não adianta olhar para mim com essa cara de gato cagando
embaixo da chuva. E você está fedendo. O que você usou?
- Maconha, cerveja. Nada demais...
Silêncio. E desprovida de todo o orgulho Josiana pendeu a
cabeça para baixo.
- Então, era esse o lugar.
- Sim.
- Vou te levar pra casa. Precisa de ajuda para tomar um
banho?
- Não. Mas será que você pode passar a noite comigo lá?
- Sim. Pare de chorar.
- Eu paro.
- Pare de chorar. Pra sempre. Pra sempre, pode ser?
- Pode ser.
- Promete que você vai me contar as coisas? Que não vai
deixar essas coisas de dentro maltratarem você?
- Essas coisas são muito complicadas você sabe.
- Eu sei... Pare de chorar. Vamos embora.
Josiana bateu a porta do carro. O tempo estava ruim
felizmente não choveu.
Conto
escrito para o encontro de 28/04/2015
Milena é advogada, estuda para defensoria pública e gosta de coisas estranhas com uma pitada de drama e romance. Não sabe a diferença entre as séries "Colheita Maldita" e "Cemitério Maldito".
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