Mote do encontro 12/05
Texto
lido por Maria Leão
Capítulo 10 - Boca de morango
Capítulo 10 - Boca de morango
É
chato ser bonita.
Uma
vez bonita, sempre bonita. Uma vez desejada, sempre desejada.
O
que mais uma mulher bonita e desejada pode ser além de bonita e desejada. É o
que todos exigem que ela seja. Bonita e desejada. Mesmo que devorasse toda a
obra de Foucault, Kant, Nietzsche, sua ideia sobre o mundo ainda ficaria em segundo
plano, se o saber passa pelo filtro do corpo. É
a boca que fala, é o olho que vê, é a pele que transpira, é o corpo que pulsa,
tudo está à frente da ideia e, se bonito, boca e ideia encantam ao desejável.
Todos querem morder a boca que fala, é um desejo quase antropofágico. Cobiça-se
a boca, o nariz, os olhos, as mãos, os pés, o queixo, partes para mastigar
lentamente, consumir os pedaços de forma a remontá-lo dentro do estômago e
engolir a beleza, misto de tara e fome animal, fúria de possuir o que é belo e
dele se prevalecer, da ideia que agrada, que convém dizer. Então se usa a boca
que fala com batom, o olho que vê com rímel e delineador, a pele que transpira
com pó de arroz, o corpo que pulsa com Chanel nº5, tudo para atiçar o desejo
dos outros e levar-lhes saberes. Com todos esses aspectos em voga, pode a
mulher bonita e desejável expressar no púlpito, tranquilamente, suas ideias
sobre o mundo, que todos os salivantes vão ansiar por comê-las, mesmo sendo palavras
venenosas. Uma plateia inteira poderia morrer com as palavras despejadas de uma
bela boca. Seria essa uma distribuição democrática da beleza?
Mãe
se olha no espelho e pensa que “ainda sou bonita e desejável.” É um pensamento
instantâneo, quando percebe, já pensou, já examinou a pele, detectou novas
manchas, já se imbuiu de tarefas para se defender da ação do tempo. Insuportável
é a escravidão da beleza. Leis selvagens de sobrevivência agem para oferecer a
sublime euforia antes da dominação, sentimento que ocupa o coração do predador
que desconhece outra forma de existir, passa a sacrificar-se diariamente a
polir seus dons.
Apesar
da sorte de nascer na condição de bonita e desejável, para mãe, manter o título
é um trabalho árduo e solitário. Tem de se evitar o sol forte para não manchar
a pele, usar cremes toda noite para hidratá-la, babosa toda semana para dar
brilho aos cabelos, comer pouco para não dilatar o estômago, não fumar um cigarrinho
sequer, beber controladamente, afinal mulher bonita e desejável não pode sair
por aí bêbada e desmilinguida. Tem também que realizar periódicas e ritmadas
caminhadas longas, não há academia de ginástica por estas bandas, o controle
depende unicamente de seu esforço. E fazer sexo continuamente, no mínimo, uma
vez por semana com um macho viril. De preferência, jovem. Os mais velhos
disponíveis ou são carentes demais e ou controladores demais, características
básicas de se transformarem no que é o popular ser significado como um “baú sem
alças”. Isso é tudo muito difícil de manter, principalmente fora de temporada.
(...)
LEÃO, Maria. Morangos Selvagens. Lisboa: Chiado Editorial, 2015.
Maria Leão nasceu em Teresópolis, município da Serra Imperial fluminense e mora na cidade do Rio de Janeiro. Estou arquitetura e roteiro cinematográfico, é autora das peças "Contrária: do vulto das mulheres selvagens" e "Jabuticaba". "Morangos selvagens" é seu primeiro romance.
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