Esquisito - Maiara Líbano
Esquisito
Eduardo é esquisito. Tem dezesseis anos. Idade em
que ou você é esquisito e autêntico ou é fraco e aceito. E pra isso tenta
construir apressadamente uma personalidade legitimada por uma maioria que você
no fundo não se importa. Mas o que importa mais do que ser aceito? Para as
meninas do segundo ano nada parece ser mais importante. Olha, como todas elas
são parecidas. O cabelo do mesmo tamanho, pro mesmo lado, a calça legging, a
bolsa também é parecida. Para os meninos também não é diferente, na imensa
maioria se vestem iguais, camisas com dizeres em inglês que não fazem qualquer
sentido pra eles. E que custam caro. E que mudam de tempos em tempos.
Pra Eduardo tudo está às avessas. Esquisitos são
todos esses, que se autoflagelam dessa maneira. Bacana é ele, que tem
personalidade, que é autêntico. Que usa sempre o mesmo tênis, que combina com
ele, que sempre teve o cabelo descuidado, mesmo antes de virar tendência.
A existência do Eduardo na escola era nula. O
headphone era única companhia. Ali dentro as melhores companhias do mundo:
Sonic Youth, Velvet Underground, Bob Dylan, Cat Stevens, todos os gênios. Por
essas e outras que Eduardo cagava pra impressão que podia causar, ou que
causava em qualquer pessoa daquele ambiente da escola.
Toca o sino do intervalo. Sobe a manada. Eduardo pra
variar vai se arrastando mais lentamente, com uma certa distância de todo
aquele alvoroço.
- Bom, gente, como falei na aula passada, hoje a
gente começa a falar da Guerra do Golfo. Vamos abrindo o livro aí na página 340.
Quem quer ler?
Toc toc
- Com licença professor.
- Toda, dona Fátima. Algum recado da direção?
- Não, não. Vim trazer uma aluna nova. Pode entrar
minha filha.
- Olá seja bem vinda. Como você se chama?
- Isabela.
Por coincidência ou não, a bateria do celular de
Eduardo acaba bem nessa hora, fazendo-o levantar a cabeça da carteira, e tirar
o fone. De repente, dirigindo os olhos à lousa, Eduardo e Isabela cruzam
olhares. Absolutamente atrapalhado, ele deixa o celular cair no chão rompendo
aquele momento brevíssimo de um estranho flerte.
Começou assim essa espécie de hipnose - porque era
esse o efeito que Isabela gerava sobre ele. Ele ficava chapado com ela.
Não que ele achasse que teria alguma chance com ela.
Mas se houvesse, diminuiria cada dia mais. Porque não era só ele que babava por
ela. Eram quase todos os meninos do segundo ano, alguns do terceiro até. E não
seria exagero acreditar que até o professor de Educação Física, e o de
Geografia, estavam admirados demais com a aluna nova.
O perfil dela era muito diferente das outras
garotas. Sempre bem vestida, mas num estilo totalmente diferente daquele
rebanho uniformizado. Cumprimentava a todos: do popular ao looser. Tinha
estudado em várias escolas diferentes: católica, waldorf. E estava voltando
para o Brasil depois de um ano vivendo em Londres. Todos achavam incrível essa
vida cigana que ela levava por conta do trabalho da mãe, executiva do ramo de
mineração. Mas ela não se gabava dessas coisas, muito pelo contrário, raramente
colocava esse assunto em pauta, e dizia com frequência que gostaria muito mais
de ter estudado sempre na mesma escola e de ter a chance de manter as amizades.
Prestar atenção às aulas nunca foi o forte de
Eduardo. Mas depois da chegada da Isabela essa realidade piorou consideravelmente.
Podia ficar horas olhando a menina. Chapado.
O dia em que conversaram um pouco mais foi assim:
Era intervalo. Os dois estavam na fila da cantina.
Ele um pouco mais à frente que ela.
- Nossa que fila...tomara que eu consiga comprar
antes de tocar o sinal.
- É....
Respondeu toscamente Eduardo.
- Então, pra ser um pouco mais denotativa eu estava
querendo dar uma de espertinha (risos). Será que você não compra um Passatempo
pra mim Eduardo?
- Ah sim, claro. Foi mal. Não tinha entendido. De
chocolate mesmo?
- Aham. E o que você está ouvindo aí?
- Ah é um som meio esquisito.
- O quê? Agora fiquei curiosa. O que seria um som
esquisito?
A partir daí começaram a se falar mais. Já começou a
surgir um pequeno espaço pra uma possível paquera. E Eduardo estava cada vez
mais apaixonado. Era bonita demais, gentil demais, cheirosa, engraçada demais.
E tinha um interesse verdadeiro e ingênuo sobre todas as coisas do mundo.
- Ai meu deus, o que fazer pra ficar com essa
menina?
Se perguntava constantemente.
Se transformar num cara interessante, digno daquela
beldade, virou uma meta para Eduardo. Começou a ler dicas de xavecos na
internet, a se preocupar bastante com a aparência. Passou a se perfumar até.
Procurava estar antenado em tudo. Para estar apto a desenvolver qualquer tipo
de assunto que ela pudesse trazer. O dia era sempre curto para todo esse
preparo antes dos momentos em que possivelmente estaria próximo a ela.
Até que um dia, no meio da aula de português, assim
sem mais nem menos, com uma espontaneidade admirável, Isabela diz:
- Ei! Vai ter um lual na praia amanhã. Topa ir
comigo?
- Claro, vamos sim!
Durante essas 24 horas que se seguiram Eduardo não
conseguia pensar em nenhuma outra coisa. Foi no shopping, lugar que mais
detesta no mundo, pra comprar uma roupa bacana. Ficou puxando peso com os
trecos de musculação do irmão, treinando cantadas, etc. Lá pro fim do dia,
depois de bater um papo com o tio solteirão e com o irmão mais velho, já estava
com um plano todo arquitetado. Tinha na cabeça exatamente os movimentos que
teria que ter pra pegar a garota.
É chegada a grande hora.
Ela já está ali, no lugar combinado. Ele a avistou
de longe. Repreendendo o nervosismo que queria lhe tomar, Eduardo se recorda da
estratégia planejada. Por um segundo hesita. Como se não estivesse certo do
plano. Mas negando esses pensamentos foi pra ação. Sem qualquer cumprimento ou
qualquer outro gesto anterior, girou o corpo grosseiramente para cima da
menina, agarrou o cabelo com força, travando-a com uma mão, e com a outra
apalpando-a indecentemente. O corpo da menina fazia impulsos querendo se soltar
daquele constrangimento. E quanto mais o fazia, mais Eduardo a prendia,
aumentando a força, tentando impulsionar o máximo de virilidade possível na
cena. Até que se solta.
- Por que fez isso? Que grosseiro. Não era isso que
imaginava de você.
Eduardo nada respondeu. Não tinha resposta a dar.
Ele também não sabia o que tinha feito.
Em seguida, com um olhar triste, Isabela se virou
pra ir embora. Sem olhar pra trás.
Eduardo continuava ali parado, no mesmo lugar. A
agressividade que habitava seu corpo rijo deu lugar a um enfraquecimento total.
Interno e externo. Sentia como se cada partícula do seu corpo fosse baixa. Foi
acometido de uma culpa profunda. E se sentiu, como nunca antes, moralmente
frágil.
Conto escrito para o encontro de 12/05/2015
Maiara Líbano não é precisa, é contraditória.
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